A audiência de custódia deve ser compreendida como um instrumento voltado a uma necessária política de desencarceramento. O atual quadro do sistema prisional brasileiro ganha tons ainda mais dramáticos se considerarmos a imensa cifra de presos provisórios (leia mais em “Encarceramento no Brasil”). A incidência da audiência de custódia se dá exatamente nessa via, buscando reduzir a entrada de pessoas no sistema prisional como presos provisórios.
Embora o direito atribua à prisão provisória uma função distinta da prisão definitiva, sabe-se que a violência do confinamento incide sobre todos e todas. Diante da escalada desproporcional da prisão provisória no Brasil, foram diversos os atores políticos que confrontaram o Poder Público em busca de soluções para reverter essa conjuntura. As “alternativas penais” surgem desta disputa, englobando uma preocupação na redução do encarceramento de pessoas em status provisório
ou definitivo.
Como se percebe na resolução do CNJ, as alternativas penais não devem ser usadas como incremento de controle sobre a população, mas sim enquanto instrumentos para a redução significativa da população prisional. Nesta seção, destacamos que a audiência de custódia pode ser compreendida em conjunto com outras medidas desencarceradoras, incluídas aí as alternativas penais. Para isso, é preciso destacar a subsidiariedade das medidas cautelares, a estatura constitucional do princípio de presunção de inocência e a liberdade como regra, de forma a combater sua distorção por uma cultura punitivista.
A Lei 12.403/2011 amplia as possibilidades de medidas cautelares. A partir do seu leque de medidas cautelares diversas da prisão, os juízes e juízas brasileiros não teriam como justificar a prisão argumentando que a legislação brasileira apresentaria poucas opções alternativas à prisão.
As novas medidas cautelares foram estabelecidas como uma ruptura com o modelo binário que opunha prisão cautelar e liberdade provisória como as duas únicas possibilidades para os acusados em processos criminais.
Embora a lei tenha sido um importante passo numa mudança de cultura de prisão como regra, a aplicação desses institutos no poder judiciário ainda obedece ao binarismo prisão/liberdade. A diferença substancial é que, agregada à liberdade, o juiz/a juíza adiciona medidas cautelares que terminam por promover um maior controle
e contenção.
Na ordem de prioridade de uma decisão judicial penal, o primeiro direito a ser considerado é a garantia da liberdade de forma irrestrita, conforme dispõe a Constituição Federal, consagrando o princípio da presunção de inocência. Ou seja, deve-se garantir a liberdade sem imposição de prisão preventiva ou qualquer outro tipo de medida cautelar. Somente se configurada e justificada a necessidade de uma medida, esta deverá ser aplicada.
"Apresentado como alternativa ao controle carcerário intramuros, o cárcere eletrônico – ao mesmo tempo que preserva o sujeito da cruel realidade do encarceramento moderno que degrada, destitui-o de respeito e impõe uma rotina de sobrevivência por vezes desumana – reinventa um modelo de controle público total sobre o corpo que dociliza, marca interna e externamente a experiência ilusória de liberdade e impede o exercício da autonomia e responsabilidade."
(PIRES, Thula. Do ferro quente ao monitoramento eletrônico: controle, desrespeito e expropriação de corpos negros pelo Estado Brasileiro. In: FLAUZINA, Ana; FREITAS, Felipe; VIEIRA, Hector; PIRES, Thula. Discursos negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2018. p.818).
Distintamente da monitoração eletrônica, as alternativas penais devem romper com uma concepção pautada unicamente na perspectiva de fiscalização por parte do Estado e incorporar novos contornos mais emancipatórios. Devem ser capazes de proporcionar a responsabilização, garantindo a participação social, uma vez que são cumpridas na sociedade; a pessoa em alternativas penais não fica privada de liberdade, nem restrita em sua autonomia, podendo manter os vínculos trabalhistas, familiares e sociais.
No intuito de ampliar a oportunidade de aplicação de medidas cautelares em substituição efetiva à prisão provisória, buscando também assegurar seus fundamentos legais, suas finalidades e seu acompanhamento, o Protocolo I da Resolução 213/2015 apresenta uma série de princípios a serem observados no processo de aplicação das medidas cautelares pelo Sistema de Justiça:
Para a materialização desse rol principiológico que, além da aplicação, também prevê a qualificação do processo de acompanhamento das medidas cautelares, é necessário o esforço coletivo de uma rede de atores, atuando de forma integrada. Para tanto, a Resolução 213 dispõe que o acompanhamento das medidas cautelares diversas à prisão, determinadas judicialmente, deverá ficar a cargo das denominadas Centrais Integradas de Alternativas Penais e Centrais de Monitoração Eletrônica.
Esses serviços deverão ser estruturados preferencialmente no âmbito do Poder Executivo estadual e contarão com equipes multidisciplinares e metodologias específicas voltadas para o atendimento do público em situação de medidas cautelares. A proposta é que as Centrais atuem apoiando, inclusive, as audiências de custódia.
Ou seja, as Centrais atuarão no acolhimento, orientação e encaminhamento da pessoa em liberdade provisória (com ou sem medida cautelar imposta) para o comparecimento, de forma não obrigatória, às políticas de proteção social. Nesse ponto, a Resolução também enfatiza que não são cabíveis medidas cautelares para tratamento ou internação compulsória de pessoas autuadas em flagrante que apresentem quadro de transtorno mental ou de dependência química, em conformidade com o previsto no art. 4º da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, e no art. 319, inciso VII, do Código Penal.
Para uma articulação efetiva entre as Centrais e as Audiências de Custódia, deverão ser pactuados fluxos e procedimentos para interlocução entre as equipes multidisciplinares das Centrais e o Juízo ao qual for distribuído o auto de prisão em flagrante, após a realização da audiência de custódia. A pactuação de tais procedimentos tem como objetivo viabilizar o compartilhamento regular de informações sobre o acompanhamento do público e os encaminhamentos realizados.
O site audienciadecustodia.org.br é uma iniciativa do ISER - Instituto de Estudos da Religião, com o fim de divulgar informação qualificada sobre o instituto da audiência de custódia.
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